Toda mulher é uma mãe sem filho
Nascer mulher tem sido, desde sempre, sinônimo de cuidar - e isso não é escolha, é pressão.
Quando pensamos no espaço da mulher na nossa sociedade, a primeira palavra que surge é: cuidadora.
Desde cedo, somos ensinadas a sermos responsáveis, sensatas, organizadas. O elogio vem disfarçado: “tão madura para a idade”, “a mãe do grupo”. Mal deixamos de ser vistas como crianças e já esperam que sejamos cuidadoras — de coisas, de pessoas, de sentimentos alheios.
Me parece que uma mulher, não importa a idade, nunca consegue fugir da ideia de que, de alguma forma, ela é mãe. Mesmo sem ter filhos.
E que fique claro: não quero minimizar a maternidade, nem fingir que ser comparada a uma mãe é o mesmo que ser uma. Mas é curioso - assim que deixamos de ser cuidadas, passamos a ser cobradas como se já soubéssemos cuidar.
Sem intervalo, sem fase de transição, sem “meninas serão meninas”.
De repente, crescemos e nos tornamos responsáveis por tudo. Como se nossa existência fosse uma linha reta: da experiência de ser cuidada à obrigação de cuidar - sem espaço para ser alguém no meio.
E talvez o que mais assuste nisso tudo seja o fato de que, para uma mulher, é difícil dizer quando isso começou. Não há um rito de passagem, ninguém se importa de conversar conosco. Apenas um peso que se acumula aos poucos nos ombros - como se, de repente, a responsabilidade por tudo ao redor simplesmente passasse a ser nossa.
Sem explicação, sem consentimento. Apenas a expectativa silenciosa de que, por sermos mulheres, saberíamos cuidar.
Isso não é coincidência, nem sensibilidade feminina. É estrutura.
É uma armadilha antiga, disfarçada de virtude: espera-se que o cuidado seja instinto, e a empatia, obrigação.
Mulheres são vistas como seres emocionais - frágeis, delicadas, empáticas. Mas também como responsáveis. Sempre. Isso não é surpresa para ninguém. E não falo só da responsabilidade por filhos, o único ser a quem, biologicamente, se poderia argumentar que devemos algum cuidado direto.
Espera-se que mulheres se importem com tudo e com todos: que saibam como se portar, como cuidar, como calar.
Que não incomodem, que sejam pacientes com os homens à sua volta. Que não exijam nada - nem colaboração, nem descanso, muito menos agradecimentos.
Cobrar que um homem faça sua parte na casa ainda pode render um rótulo de ‘exagero’. E levantar a voz? Histeria.
Até nas menores coisas, a culpa é nossa.
Essa responsabilização não nasce apenas dentro de casa, ela se espalha por todos os espaços. É como se o simples fato de ser mulher já viesse com um roteiro silencioso: o de se responsabilizar por tudo.
Não se trata apenas de maternidade biológica - mas de algo maior, mais difuso. Uma maternagem estendida, que nos segue em qualquer ambiente: no trabalho, entre amigos, e até no meio da rua.
Está no nosso dia a dia. Mesmo quando a gente não percebe.
É quando vivemos em uma sociedade onde o “relacionamento tradicional” se baseia na mulher passar a ser aquela que cuida de tudo que o outro ignora. Quem arruma a casa, marca as consultas, organiza a rotina, acalma os ânimos, lembra os prazos, pergunta se ele está bem. Como se fosse óbvio que ela saberia cuidar de dois - dela e dele.
O parceiro adulto que se torna, silenciosamente, mais um a ser carregado no colo.
É tão intrínseco à nossa cultura que virou piada: “homem só sobrevive porque tem uma mulher por perto”. Rimos, fazemos memes, tratamos como natural. Como se essa fosse, de fato, a função óbvia de uma mulher - colocar todos à sua frente.
Não é exceção. É regra social disfarçada de acaso.
Essa carga invisível se acumula em silêncio - cansa, adoece, e rouba o tempo que poderia ser só seu. Quando a responsabilidade de cuidar pesa demais, fica difícil lembrar que também se é alguém.
Espera-se que sejamos sempre simpáticas, receptivas, dispostas. Nosso conforto é secundário diante da possibilidade de alguém precisar de nós. Existe uma vigilância invisível sobre o nosso estado de espírito - e qualquer falha em sorrir, ouvir ou acolher é vista quase como uma falha moral.
Então fica a pergunta: como se diz “não” a um papel que ninguém nunca nos pediu, mas todo mundo sempre esperou que aceitássemos?
Como recusar algo que não foi oferecido - apenas imposto?
O cuidado é bonito, sim. É humano. Mas quando ele se torna inevitável, o cuidado deixa de ser gesto e passa a ser grilhão.
Não é preciso negar nossas sensibilidades - apenas lembrar que elas não são exclusivas, nem obrigatórias. Que homens e mulheres podem ser diferentes, mas isso não significa que um nasceu para ser servido pelo outro.
Talvez o desafio não seja apenas cuidar menos. Mas começar a se cuidar primeiro.
O mundo nos trata como se nascer mulher fosse, desde sempre, sinônimo de nascer para servir. Chega um momento em que não temos escolha além de nos perguntar se ele está certo, afinal, ele nos treina desde cedo para sermos mães sem filhos.
Gostei demais das reflexões! Seu post me fez pensar em como o gênero atravessar a vida de uma pessoa...
Em uma sociedade binária patriarcal é muito claro o papel opressor dos gêneros e como esses gêneros são lidos individualmente, mas as vezes percebemos essas vivências atravessando lugares tão íntimos. Isso não acontece apenas no mercado de trabalho, na faculdade ou com estranhos, está presente com seus familiares, amigos e parceiros. É desgastante, por isso tbm é necessário ocupar esse espaço de questionamento nas suas relações.
Muito bom o seu post!
o mais cruel é que esse cuidado forçado vem travestido de elogio: “que mulher incrível, ela dá conta de tudo”, como se suportar fosse virtude.
mas quem cuida da mulher que cuida?
teu texto me lembrou de quantas vezes vi amigas, professoras, colegas exaustas, sobrecarregadas e ainda assim sorrindo, porque sabiam que qualquer falha nesse “cuidar compulsório” seria vista como egoísmo.
é grilhão, sim. e o pior: é um grilhão feito de afeto, o que torna mais difícil se libertar.
obrigado por escrever com tanta lucidez e coragem.
ler você é lembrar que o cuidado, para ser genuíno, precisa ser escolha, e não cobrança.